Eu tinha duas meninas, uma de 93 anos e uma mais nova que ainda nao completou 92
Cuido da Primeira fazem uns 5 anos e da Segunda faz apenas 2 anos. Sou o que chamamos aqui na França um assistente de vida, faço meu trabalho com muito carinho, dedicação e sobretudo um bom humor capaz de transformar o dia delas de uma praia da Sibéria à Copacabana e Ipanema juntas
No começo do isolamento pensei que tudo seria como antes, que eu teria menos trafego para ir ao trabalho e percorrer os 120km diários sem engarrafamento. Aos poucos as coisas ficaram mais difíceis e fui tomando consciência dos riscos que eu enfrentava e também do perigo ao qual eu expunha as minhas frágeis Meninas.
A Primeira estava cansada, debilitada e não se dava conta do que estava acontecendo, já não tinha força nas pernas para andar, somente se alimentava corretamente porque Márcia , minha irma e eu inventávamos pratos preferidos e com tanto carinho dávamos na boca pois não tinham mais força para segurar nem um copo d’agua.
Apos 15 dias de confinamento por uma preocupação por elas e conosco chegamos a conclusão que Márcia estava se expondo demais, pegando metrô, ônibus com pessoas sem mascaras que não respeitavam as distancias de segurança, às vezes voltava pra casa à pé, uma hora de caminhada que começou e se mostrar perigosa para uma mulher, numa rua deserta e mal freqüentada.
Com o coração na mão deixamos que os cuidados fossem feitos pelos enfermeiros e uma dedicada substituta durante a quarentena, na esperança de recomeçar no final da pandemia.

A Segunda quando disse que eu não poderia vir até Lyon para me ocupar dela eu sugeri que viesse se instalar em minha casa onde eu instalei uma cama de hospital e contratei enfermeiras que passam de manha e à noite. Trabalho cerca de 8 horas diárias me assegurando que não falte nada de essencial para ela. Faço passeios no terreno, ela supervisiona nosso menu, nos ajuda a descascar os legumes, verifica se as cerejas estão maduras se a horta esta bem plantada, se os carneirinhos tem comida e nos presenteou com algumas galinhas para o nosso galinheiro que instalamos no nosso jardim.
Como ela gosta de estar sempre bem penteada, conseguimos a vinda de nosso vizinho cabeleireiro regularmente para cuidar do penteado.
Passamos cerca de 3 à 5 horas diárias fazendo partidas de Rummy as vezes colorindo e fazendo exercícios para não perder os músculos.
Aluguei uma cadeira de rodas para levá-la com maior facilidades aos 4 cantos da casa e isso facilitou muito as transferências e nossos passeios na grama para ir visitar a cerejeira.
As vezes tenho impressão de estar brincando de boneca quando me aplico ao tratamento da pele, aos cremes hidratantes e o gel de aloe vera que insisto que ela beba para re-hidratação e para alivio das altas doses de morfina à qual é submetida diariamente.
Sábado passado recebi a noticia através da família que a Primeira havia falecido, partiu no seu sono e não se acordou para ver o final do confinamento que finalmente ela não tinha conhecimento tampouco do começo. Márcia, que cuidou dela durante 11 anos e eu ficamos tristes mas com o sentimento que havíamos feito nosso melhor. Varias vezes ouvimos de sua boca palavras que expressavam o quanto estava feliz em ter encontrado tanto carinho no final de sua vida.
Devido ao confinamento não tivemos o direito de participar ao enterro mas estamos programando uma visita ao seu tumulo quando tivermos o direito de sair. Levaremos daquelas flores que encantaram sua última década de existência.
Sempre gostei de ler histórias para as pessoas idosas que eu cuido, em novembro, quando eu lia este livro para a Primeira ela me disse :
« Ganhei este livro de presente de meu tio em 1940 e queria que você o guardasse de lembranças quando eu for embora » , pegou uma caneta e fez uma dedicatória.

Durante a vídeo-consulta com seu médico a semana passada a Segunda manifestou o desejo de voltar para seu apartamento apos 40 dias aqui em casa. Estamos preparando sua volta para esta semana mas desde já ficamos combinados que apos matar a saudade de sua casa ela voltara passar o verão aqui no campo conosco.
Assim vai a vida, pouco importa os problemas o importante são as soluções.
As dificuldades são uma realidade o sofrimento é uma escolha
A Felicidade é encontrar um minúsculo raio de luz nas trevas e esquecer todo escuridão e se concentrar somente na luz.
O livro arbítrio nos autoriza a fixar as trevas ou à luz , a escolha é nossa e viveremos as conseqüências.
Boa semana a cada um de vocês e não se esqueçam o final do isolamento não significa que a doença esta curada mas sim que tem vaga disponível nos respiradores.
Antonio Cançado de Araujo
Mogneneins 11 de maio 2020
Apos a publicação deste artigo, meu irmão mais velho me enviou uma mensagem para dizer que nossa mae , Maria Aparecida Cançado de Araujo, se estivesse viva (faleceu faz 51 anos) estaria completando 93 anos no dia de hoje.
